Sozinha na Igreja de São Francisco, no Pelourinho, Salvador, Bahia, senti como ainda dói a ferida do racismo.
Entrei no templo coberto de ouro para enfrentar mais uma vez uma das contradições da minha alma – não gosto de religião, de nenhuma, mas amo a arquitetura barroca das igrejas católicas coloniais e os rituais herdados da África.
Se gostasse de rezar, seria personagem do tão brasileiro sincretismo religioso.
De manhã na missa, à noite no candomblé ou umbanda. Ou vice-versa.
Ali, na tarde quente de Salvador, as duas coisas se encontraram, por acaso.
Uma música melancólica, ao mesmo tempo forte, começou assim que sentei no banco da igreja erguida no século 18.
Começou e cresceu, até virar um manifesto, hino religioso com letra de protesto.
Negros, provavelmente pobres, os cantores do coral que ensaiava em frente ao altar luxuoso lembravam os açoites, as perseguições, a vida de sofrimento. Descreviam, na melodia, a sina dos africanos escravizados pelos senhores do poder no Brasil.
De fora, perto do lugar onde os escravos eram castigados, vinha o som dos tambores da Bahia. O batuque entrava no templo e misturava-se à canção, numa atmosfera de cor púrpura.
Eu chorei naquele dia, bastante, alto, sem vergonha.
Talvez chore de novo hoje. Mulher que não sabe torcer por futebol, apesar das tentativas, elegi como expectativa para a Copa do Mundo a presença de Nelson Mandela no dia da abertura, antes do jogo entre a África do Sul e o México.
Aos 91 anos, frágil, ele carrega nas costas o peso dos quase 30 anos de prisão e a glória de ter conseguido acabar oficialmente com o apartheid.
É um ícone, uma presença que, controvérsias recentes à parte, nos lembra que ainda há um longo e pedregoso caminho pela frente.
Lá – e aqui – a escravidão acabou, a discriminação racial continua.
Nos campos, a partir de hoje, jogadores brancos e negros vão produzir beleza em condições de igualdade.
Grafite, ex-vendedor de sacos de lixo, vítima do racismo quando começava a melhor fase de sua carreira, pode – e deve – entrar de cabeça erguida. Entrar e assim ficar, jogando ou não. Enfrentar quem ainda aposta no racismo já é uma vitória.
Mandela, num dia de triunfo, faz o mundo olhar além da bola mais uma vez para a África, para os negros, para o absurdo que é pensar em separar gente por causa da origem.
Para mim, é a cena que ficará. Para sempre. Dez ou quinze minutos imortalizados.
Mandela, num dos últimos atos de sua longa vida, reverenciado como merece.
O ancião reconhecido porque teve coragem e mudou uma história feita de horror.
Nessa hora, que espero ansiosa, escutarei uma música imaginária. Imaginária e particular, só minha.
Ela vai juntar o lamento dos negros baianos, os tambores da África e o grito de guerra de quem precisou – e ainda precisa – resistir. E a vuvuzela, símbolo da alegria com que os africanos celebram a Copa da integração.
sexta-feira, 11 de junho de 2010
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3 comentários:
Cara Cristina,
Sentir muitos sentem. Conseguir expressar o sentimento em palavras escritas, é um dom para poucos. Fazer que outras pessoas sintam sua emoção ao ler, é raríssimo. Parabéns, pelo texto e pelos sentimentos. Seu fã, Ricardo Barreira.
Cris é muito bom ler o que vc escreve. Comemoro sua volta ao palavras Escritas que tem mais de 140 caracteres.Bjo
Muio bom o texto. As palavras fortes me fazem refletir, sentir, perceber. Um talento nato. Meus parabéns.
Te convido a me visitar:
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