segunda-feira, 26 de abril de 2010

Os esquecidos

Fiquei apenas algumas horas ao lado do homem que tem a história mais impressionante que já ouvi. Ele morreu alguns meses depois. Aquelas poucas horas serão mesmo as únicas. Ainda bem que paralisei, só ouvidos.

Ele morava em São Paulo, numa casa ampla construída no estilo alemão. Tinha um câncer no pulmão quando o encontrei. A mulher, uma antiga empregada doméstica portuguesa com quem casara ao ficar viúvo, escondia a doença do marido. Mas ele sabia, deixou claro que sabia.

Erwin Dietrich nasceu na Alemanha e era pobre, muito pobre, quando decidiu embarcar no transatlântico Vindhuk, que partiu em julho de 1939 para uma viagem turística. Erwin era tripulante, do tipo que dorme no porão. Estava ali para não passar fome em sua terra natal.

O Vindhuk não pode voltar a seu porto por causa da 2ª Guerra Mundial. Navio e tripulantes ficaram dois anos em Santos. Quando o Brasil declarou guerra ao Eixo, os alemães sem destino foram levados para campos de concentração improvisados, onde ficaram presos e fizeram trabalho forçado.

Erwin passou um ano em Bauru, que tinha uma dessas prisões esquecidas pela história. Veio de trem, indignado para o resto da vida. Vi o nome dele numa lista de ex-prisioneiros, procurei na lista telefônica e o encontrei.

Ele não acreditou muito que uma repórter e um fotógrafo de Bauru viajariam até São Paulo só para entrevistá-lo. Solto após o fim da guerra, o homem nunca mais conseguiu voltar para a Alemanha. Primeiro por causa da falta de dinheiro. Não era ninguém nas ruas brasileiras, não tinha nada. Depois porque aqui construiu seu patrimônio, trabalhando muito. Não dava para recomeçar do outro lado.

Sentado perto da mesa forte de madeira, gravador ligado, fez jorrar seu drama sem parar um segundo. Chorou, esbravejou, expõs seu inconformismo.

Durão, até ríspido, nunca foi uma pessoa fácil. Talvez por isso pouca gente tenha parado para ouvi-lo com atenção. Talvez ele mesmo tenha afastado as pessoas ofendidas com o ódio que manifestava ao Brasil, país que o prendeu para sempre.

No fim da vida, queria ser ouvido. Por sorte, eu estava lá. Na saída, ele pediu: "Conta a minha história".

Aconteceu de novo semana passada, em outra rua, outra circunstância.

Envolvida numa séria sobre os filhos de pais portadores de hanseníase, encontrei a dona-de-casa Maria Camargo num dos bairros carentes de Bauru, o Jardim Manchester.

Maria fez como Erwin: despejou seu drama sem parar para respirar, entre lágrimas que doeram em todo mundo que estava perto. É duro ver alguém chorar porque a vida foi toda triste.

Ela foi separada dos pais aos oito meses de idade e cresceu rejeitada por causa do medo da contaminação. Não brincou, não foi para a escola, sofreu humilhações.

Os pais encontraram a cura e puderam rever os filhos. Maria já tinha 11 anos e a marca da rejeição. Ela e os pais fazem parte de um dos capítulos mais absurdos da história brasileira, a dos prisioneiros e órgãos da hanseníase.

Ninguém havia pensado nos filhos, pelo menos até agora, quando começa um movimento para indenizar também essas pessoas tratadas com brutalidade e descaso.

"Nós estávamos esquecidos", lamenta Maria. "E aqui fora sofremos mais do que quem estava lá dentro".

A dona-de-casa contou sua história drama há pouco tempo para o marido. Lembrava dos que fugiam dela na infância e temia que ele fosse embora também.

De novo, por sorte, eu estava lá para ouvir Maria como ela merece ser ouvida.

"Ainda bem que está aqui para eu contar tudo o que me aconteceu. Hoje estou feliz. Ficamos 50 anos esquecidos. Agora somos lembrados", ela agradeceu.

Acho que sou eu que devo dizer obrigada.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

O Rio da tristeza

Quando era menor, minha filha de 9 anos queria conhecer Paris. Sabe como é criança... O desejo não é para o futuro, quando quer, quer para agora.

Tinha uma explicação: um desenho muito bonitinho, sobre uma tartaruga argentina que ia para a França e virava modelo famosa no meio do glamour.

Assistimos dezenas de vezes, decoramos a música, os gestos, as frases da tartarguinha.

Paloma ainda quer conhecer Paris, mas o desejo ficou menos urgente. A gente cresce e aprende a esperar, enquanto sonha, sonha muito.

Nesta nova fase, agora pré-adolescente, minha menina descobriu-se louca para conhecer o Rio de Janeiro. Acho que estimulei isso. Sempre falo: "nossa, conheço a Bahia, Pernambuco, Alagoas, Minas e nunca fui ao Rio, que é aqui do lado..."

Nunca fui porque sempre tive medo. Das balas perdidas e também das que têm alvo certo. Dos assaltos, de ficar perdida e cair num lugar em que é proibido passar, de encontrar uma guerra de traficantes no meio do caminho.

A violência não é uma característica apenas do Rio. São Paulo é uma cidade perigosa, já trabalhei em redação cercada de riscos por todos os lados. Não é nada bom andar pela metrópole e ver pessoas que moram nas ruas, sem que ninguém dê muita bola.

É tudo verdade, mas o Rio... Não sei quando começou, mas há uma guerra evidente de morro contra morro, morro contra polícia, asfalto contra asfalto...

E agora os morros que desabam, carregam casas, igrejas, creches, vidas, tantas vidas...

Parece uma penitência cruel. O Rio é tão lindo, o astral tão alto, lá não poderia ser tudo tão perfeito.

Não, não acredito nisso. O que sinto é muita vergonha de morar num país em que a cidade-símbolo, a região mais bela tenha sido largada ao ponto de um bairro ser construído em cima de um antigo lixão, que agora explodiu.

Comemorei a escolha do Rio para sediar as Olimpíadas 2016. Paloma viu, entendeu o que isso significa, torceu também. E teve mais vontade ainda de conhecer a cidade maravilhosa.

A vontade não passou, nem a minha nem a dela. Mas a inocência acabou, agora de vez. Não dá mais para cantar o Rio como a cidade do barquinho no mar azul...