Fiquei apenas algumas horas ao lado do homem que tem a história mais impressionante que já ouvi. Ele morreu alguns meses depois. Aquelas poucas horas serão mesmo as únicas. Ainda bem que paralisei, só ouvidos.
Ele morava em São Paulo, numa casa ampla construída no estilo alemão. Tinha um câncer no pulmão quando o encontrei. A mulher, uma antiga empregada doméstica portuguesa com quem casara ao ficar viúvo, escondia a doença do marido. Mas ele sabia, deixou claro que sabia.
Erwin Dietrich nasceu na Alemanha e era pobre, muito pobre, quando decidiu embarcar no transatlântico Vindhuk, que partiu em julho de 1939 para uma viagem turística. Erwin era tripulante, do tipo que dorme no porão. Estava ali para não passar fome em sua terra natal.
O Vindhuk não pode voltar a seu porto por causa da 2ª Guerra Mundial. Navio e tripulantes ficaram dois anos em Santos. Quando o Brasil declarou guerra ao Eixo, os alemães sem destino foram levados para campos de concentração improvisados, onde ficaram presos e fizeram trabalho forçado.
Erwin passou um ano em Bauru, que tinha uma dessas prisões esquecidas pela história. Veio de trem, indignado para o resto da vida. Vi o nome dele numa lista de ex-prisioneiros, procurei na lista telefônica e o encontrei.
Ele não acreditou muito que uma repórter e um fotógrafo de Bauru viajariam até São Paulo só para entrevistá-lo. Solto após o fim da guerra, o homem nunca mais conseguiu voltar para a Alemanha. Primeiro por causa da falta de dinheiro. Não era ninguém nas ruas brasileiras, não tinha nada. Depois porque aqui construiu seu patrimônio, trabalhando muito. Não dava para recomeçar do outro lado.
Sentado perto da mesa forte de madeira, gravador ligado, fez jorrar seu drama sem parar um segundo. Chorou, esbravejou, expõs seu inconformismo.
Durão, até ríspido, nunca foi uma pessoa fácil. Talvez por isso pouca gente tenha parado para ouvi-lo com atenção. Talvez ele mesmo tenha afastado as pessoas ofendidas com o ódio que manifestava ao Brasil, país que o prendeu para sempre.
No fim da vida, queria ser ouvido. Por sorte, eu estava lá. Na saída, ele pediu: "Conta a minha história".
Aconteceu de novo semana passada, em outra rua, outra circunstância.
Envolvida numa séria sobre os filhos de pais portadores de hanseníase, encontrei a dona-de-casa Maria Camargo num dos bairros carentes de Bauru, o Jardim Manchester.
Maria fez como Erwin: despejou seu drama sem parar para respirar, entre lágrimas que doeram em todo mundo que estava perto. É duro ver alguém chorar porque a vida foi toda triste.
Ela foi separada dos pais aos oito meses de idade e cresceu rejeitada por causa do medo da contaminação. Não brincou, não foi para a escola, sofreu humilhações.
Os pais encontraram a cura e puderam rever os filhos. Maria já tinha 11 anos e a marca da rejeição. Ela e os pais fazem parte de um dos capítulos mais absurdos da história brasileira, a dos prisioneiros e órgãos da hanseníase.
Ninguém havia pensado nos filhos, pelo menos até agora, quando começa um movimento para indenizar também essas pessoas tratadas com brutalidade e descaso.
"Nós estávamos esquecidos", lamenta Maria. "E aqui fora sofremos mais do que quem estava lá dentro".
A dona-de-casa contou sua história drama há pouco tempo para o marido. Lembrava dos que fugiam dela na infância e temia que ele fosse embora também.
De novo, por sorte, eu estava lá para ouvir Maria como ela merece ser ouvida.
"Ainda bem que está aqui para eu contar tudo o que me aconteceu. Hoje estou feliz. Ficamos 50 anos esquecidos. Agora somos lembrados", ela agradeceu.
Acho que sou eu que devo dizer obrigada.
segunda-feira, 26 de abril de 2010
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