segunda-feira, 28 de junho de 2010

Os botões

Quase toda vez que deixo escapar minhas lamúrias sobre futebol, tem um amigo por perto para lembrar: até o Chico Buarque gosta. Imediatamente reconheço a falta de argumentos. Se Chico Buarque gosta, deve ser bom. Deve ser muito bom.
Na Copa da França, em 1998, pela primeira vez abri os cadernos de esporte dos jornais. Havia apelos para isso. O cenário, a imensa expectativa brasileira e a vontade de entender o mundo masculino.
Inocente ainda. Entre homens e mulheres há atração, não compreensão. Hoje eu sei, ou penso que sei.
Abri os jornais e num deles encontrei uma crônica inesquecível. Era Chico, falando sobre o Politheama, o time de futebol de botão que criou na infância.
Sou fã, isso talvez dê direito a um desconto, mas o texto era simplesmente genial.
Queria que os jornais impressos tivessem link, como na internet, para eu não ser chamada de exagerada. Queria que todo mundo lesse o que me encantou para sempre.
Na crônica, Chico conta que na época os botões “eram venerados como ícones, beijados, polidos com flanela, concentrados em caixas de charuto e inegociáveis”.
Pois um dia Chico encontrou um de seus melhores botões, o Formiga, ex-jogador do Santos. Em carne e osso. Conversou rapidamente e ficou mudo. Longamente mudo. Mudo de emoção.
Eu queria ter jogado futebol de botão para sentir algo parecido. Para ver poesia nos dribles reais e derramar lembranças lúdicas. Encontrar um craque de verdade e ficar em silêncio, calada pelo impacto de saber que o herói dos campos é de verdade, anda como todo mundo, fala como todo mundo, é capaz de cometer falhas como todo mundo.
Não gosto de saber das atitudes prosaicas de Chico justamente por isso. Ídolo é melhor na imaginação do que saindo do mar acompanhado de uma morena.
Aquela crônica mostrou que futebol não é só berro na vitória e palavrão na derrota.
Virei uma pescadora de pérolas futebolísticas, pelo menos de quatro em quatro anos, nas Copas do Mundo.
Todo dia procuro alguém que, lá da África do Sul, consiga voltar à meninice e resgatar memórias preciosas.
Nada de Dunga e suas ofensas. Nada de seleção que ignora os fãs e a arte.
Uma vez por semana, entrevisto um esportista da cidade. A maior parte é boleiro. Gosto dos velhos. Os que sentam, felizes por serem ouvidos, e puxam o fio de seus antigos enredos.
Há ternura nesses encontros. E, algumas vezes, emoção. Alguns choram porque é toda uma vida lembrada, com os altos e baixos, o que deu certo e o que virou fracasso.
Outros disfarçam uma mágoa, acreditam que estão esquecidos, viraram fotos amareladas e guardadas na gaveta.
Penso que estão enganados. A beleza que criaram nos campos não sai da cabeça dos meninos torcedores.
Tem os transformados em botões, “polidos com flanela, guardados em caixas de charutos”. Tem os que deixam mudos os homens crescidos.
Desconcertados ao poder tocar no que antes era pura fantasia.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Não tem mais bobo não

Copa do Mundo não é só futebol, talvez nunca tenha sido, em 2010 isso é ainda mais explícito.
É também moda, política, comportamento, religião, Twitter... Tudo junto, uma coisa revelando a outra.
As chuteiras em busca da bola como metáfora da vida, seus altos e baixos.
Maradona de terno e gravata é um pedido das filhas. O craque já foi desvairado, nunca pai distante. Pelo menos é o que parece.
Seguir os conselhos das meninas certamente não foi o maior esforço na vida do homem que já chegou à beira da morte, numa dependência química pública, desconcertante.
E ele conseguiu se recuperar, agora dando medo por causa dos goleadores que comanda.
Terno e gravata no campo, promessa de strip-tease para depois. Nada mais Maradona do que sair pelado para comemorar o título, não é não?
Dá um pouco de inveja de toda essa passionalidade, futebol combina com paixão. Não com rabugice crônica, credo.
Rabugento, teimoso, burocrático, mas elegante. Na estreia brasileira, na falta de beleza em campo, o que chamou a atenção mesmo foi o figurino de Dunga, de casacão e gola rolê, by Hercowich.
Roupa de grife, sucesso no Twitter, onde foi chamado até de Napoleão.
Na rede social, o que virou hit é o o internacional “cala a boca, Galvão”. Até os excluídos digitais conhecem a campanha, que extrapolou as barreiras da internet e foi comentada até pelo próprio locutor.
São dois fenômenos. O visível é a irritação de milhares de brasileiros com o narrador de todos os esportes, especialista em soltar pérolas e repetir clichês, já esperados.
O que precisa ser estudado é a aversão que ao mesmo tempo atrai.
Todo mundo ataca Galvão e suas patriotadas. Todo mundo ouve Galvão, sem ele a Copa não seria a mesma. Amor e ódio, tudo junto. Como pode? Pensando bem, pode sim.
Ronaldo, aquele que já foi fenômeno, é o jogador que me vem a cabeça quando penso nos altos e baixos.
No futebol e fora dele.
É histórica a amarelada do jogador no dia francês que a pátria de boleiros ainda não conseguiu entender.
Ficará para sempre na memória coletiva o mesmo Ronaldo, cabelos no estilo Cascão, comemorando a redenção e o pentacampeonato.
Agora, quem entende de futebol fala em Raí quando analisa as dificuldades de Kaká na África.
Eu penso em Ronaldo, o garoto propaganda pressionado ao máximo para não decepcionar a torcida - e também os patrocinadores.
Bola, dinheiro, poder.
Já fui do tipo que associa sucesso em campo à política eleitoral. Já fui, essa aí ficou no passado. O “pra frente Brasil” não encaixa mais, não sem resultados práticos, comida na mesa, economia campeã.
Tudo junto. E misturado.
Hoje, quem dá prestigio a quem? O Dunga de cara feia ou o presidente que chega ao fim do ciclo presidencial com aprovação recorde, após anos tentando chegar lá?
Como diz o Galvão, aquele do cala a boca, no futebol não tem mais bobo não. Na vida real também não.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Canção para Mandela

Sozinha na Igreja de São Francisco, no Pelourinho, Salvador, Bahia, senti como ainda dói a ferida do racismo.
Entrei no templo coberto de ouro para enfrentar mais uma vez uma das contradições da minha alma – não gosto de religião, de nenhuma, mas amo a arquitetura barroca das igrejas católicas coloniais e os rituais herdados da África.
Se gostasse de rezar, seria personagem do tão brasileiro sincretismo religioso.
De manhã na missa, à noite no candomblé ou umbanda. Ou vice-versa.
Ali, na tarde quente de Salvador, as duas coisas se encontraram, por acaso.
Uma música melancólica, ao mesmo tempo forte, começou assim que sentei no banco da igreja erguida no século 18.
Começou e cresceu, até virar um manifesto, hino religioso com letra de protesto.
Negros, provavelmente pobres, os cantores do coral que ensaiava em frente ao altar luxuoso lembravam os açoites, as perseguições, a vida de sofrimento. Descreviam, na melodia, a sina dos africanos escravizados pelos senhores do poder no Brasil.
De fora, perto do lugar onde os escravos eram castigados, vinha o som dos tambores da Bahia. O batuque entrava no templo e misturava-se à canção, numa atmosfera de cor púrpura.
Eu chorei naquele dia, bastante, alto, sem vergonha.
Talvez chore de novo hoje. Mulher que não sabe torcer por futebol, apesar das tentativas, elegi como expectativa para a Copa do Mundo a presença de Nelson Mandela no dia da abertura, antes do jogo entre a África do Sul e o México.
Aos 91 anos, frágil, ele carrega nas costas o peso dos quase 30 anos de prisão e a glória de ter conseguido acabar oficialmente com o apartheid.
É um ícone, uma presença que, controvérsias recentes à parte, nos lembra que ainda há um longo e pedregoso caminho pela frente.
Lá – e aqui – a escravidão acabou, a discriminação racial continua.
Nos campos, a partir de hoje, jogadores brancos e negros vão produzir beleza em condições de igualdade.
Grafite, ex-vendedor de sacos de lixo, vítima do racismo quando começava a melhor fase de sua carreira, pode – e deve – entrar de cabeça erguida. Entrar e assim ficar, jogando ou não. Enfrentar quem ainda aposta no racismo já é uma vitória.
Mandela, num dia de triunfo, faz o mundo olhar além da bola mais uma vez para a África, para os negros, para o absurdo que é pensar em separar gente por causa da origem.
Para mim, é a cena que ficará. Para sempre. Dez ou quinze minutos imortalizados.
Mandela, num dos últimos atos de sua longa vida, reverenciado como merece.
O ancião reconhecido porque teve coragem e mudou uma história feita de horror.
Nessa hora, que espero ansiosa, escutarei uma música imaginária. Imaginária e particular, só minha.
Ela vai juntar o lamento dos negros baianos, os tambores da África e o grito de guerra de quem precisou – e ainda precisa – resistir. E a vuvuzela, símbolo da alegria com que os africanos celebram a Copa da integração.